O admirável mundo dos pastores

Carlos Matos Gomes
4 min readFeb 7, 2023

Tomemos à letra as afirmações das três religiões do Livro. Em todas elas o Deus é o Criador e todas têm um pastor, os judeus têm Moisés que trouxe da montanha os mandamentos, os Católicos têm Cristo e os muçulmanos Maomé. Para estas religiões a humanidade é o rebanho de um Senhor. É desta interpretação da humanidade que resultam todas as formas de domínio. Só muda a tecnologia.

Ao longo dos tempos a tarefa de pastorear o rebanho foi executada por profetas com a atividade certificada, pregadores, missionários, papas, ayatolhas, rabinos e por atores que exerciam a pastorícia por conta própria, génios, feiticeiros, adivinhos, bruxos e bruxas, videntes que com maior ou menor êxito participaram na massificação e na crença de uma verdade e de um pensamento único. Estes pastores determinavam o comportamento do rebanho, as modas, o que comer e quando, nada de porco, jejum e abstinência às sextas, ou aos sábados, o comprimento das saias das mulheres, a barba dos homens, as cerimónias dos casamentos, dos funerais, os dias de trabalho, os animais sagrados e os de companhia, nada de cães, estabeleciam interditos e aconselhavam sobre saúde e higiene, lavar as mãos e o traseiro, por exemplo, regulavam os processo de exercer a justiça do Criador e de levar as almas para o paraíso, crucificar, queimar, apedrejar, até existia um manual do torturador para impor respeito ao rebanho.

O rebanho da humanidade, pelo menos o que ocupa as pastagens ocidentais, viveu séculos pastoreado por estas criaturas feias e desagradáveis à vista (segundo os retratos da época) e regulado por estes mandamentos até surgir um novo Criador com um novo pastor. A televisão passou a ser o novo pastor da humanidade. O Criador assobia ao rebanho para o levar até ao matadouro através da televisão e esta através de novos cães pastores, que, pelo que tenho lido se crismaram com nomes adequados às tecnologias. Onde antes havia profetas, ayatolhas, rabinos, pregadores, bruxos e bruxas, feiticeiros e videntes existem agora uzidios e bem tratados apresentadores e apresentadoras, comentadores, influencers, motivadores, coaches, tiktokers, personnaltrainners, televangelistas, todos eles de fato e gravata de seda, e elas envernizadas e vaporosas a dizerem verdades, a exigirem o voto, a crença: — Acredita em mim que eu não te engano! -, a prometer crédito fácil, pele brilhante, felicidade e amor eterno, cruzeiros, êxito, fortuna, a denunciar os pecados dos concorrentes, a curar cegos e paralíticos enquanto do rebanho saem frases feitas proferidas pelos ajudantes: Ele diz umas verdades! E que ninguém se atreva a exigir que as prove, porque será um herege, ou a dizer que até os sinos dos relógios dizem as verdades às horas certas. Que a atividade de um político não se resume a ser um calhandreiro.

A última obra da nova arte surgiu a propósito de um balão chinês que voava por cima dos Estados Unidos. Há um século seria considerado uma aparição divina, ou a visita de extraterrestres, agora os pastores garantiram que se tratava de um diabo com um grande olho para apreciar as delícias americanas.

O novo mundo está resumido a um ecrã com um balão, uma pausa para publicidade, aos conselhos de uma influencer de peito aberto e pernas até ao último andar do arranha–céus sobre a felicidade e as boas energias, às explicações mirabolantes de um especialista em culinária vegan sobre o balão, um político a vociferar verdades sobre uns negócios manhosos, exceto a verdade sobre a irrealidade do dinheiro, isto é, que na verdade o dinheiro apenas existe enquanto o rebanho acreditar que existe e que basta quem contratou o demagogo desligar a impressora que ele fica com um papel de limpar o traseiro na carteira. .

A verdade é que o rebanho segue estes novos pastores como seguiu os da antiga e extinta civilização do seja o que Deus quiser. Ámen.

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